Sob o Viaduto e o Fio da Vida – Respira, Irmã

Saí de casa de moto,

buscando um pouco de ar,

mas o ar da cidade é pesado,

feito de pressa, fumaça e olhar.

O concreto me conhece de vista,

mesmo viaduto, mesmo caminho,

até que o tempo se partiu —

uma mulher, dois homens, e o destino.

Corpos rolando no chão,

gritos rasgando o metal,

não era briga, era assalto,

era a morte, em forma banal.

Parei sem pensar direito,

outro motoqueiro também,

não heróis, não eleitos,

só homens dizendo: ninguém

merece morrer assim.

O perigo fugiu, ficou o susto,

o medo ainda suspenso no ar,

ela tremia, o olhar perdido,

a alma tentando voltar.

Abracei aquele corpo trêmulo,

juntei o que restou do chão,

atravessei a rua com ela,

tentando segurar o coração.

Mulher negra, cansada, sozinha,

esperando o último ônibus,

sem dinheiro, sem companhia,

com o mundo pesando nos ombros.

O chão ainda gritava violência,

a bolsa rasgada, a dignidade ao léu,

o choro contido no olhar,

pedindo abrigo, pedindo céu.

Paguei um Uber pra casa,

pedi que respirasse devagar,

que aceitasse, sem vergonha,

o simples gesto de cuidar.

Disse: respira, irmã.

Aceita essa ajuda,

que não é esmola,

é só um gesto de humano pra humano,

tentando costurar o mundo

que insiste em se rasgar.

Na cidade onde brigam por bolsas,

por pedaços de nada,

por um resto de poder,

a pele negra é alvo,

é ferida exposta,

é sobrevivência diária.

Não sou santo,

nem anjo de ninguém,

só um homem que parou o motor

pra não deixar a morte passar também.

E sob o viaduto cinzento,

onde o amor ainda tenta resistir,

o vento levou um sussurro leve:

Respira, irmã.

O ar ainda é teu.

Mesmo que o mundo, tantas vezes,

te diga que não é.


Crônica – O Viaduto e o Fio da Vida

Saí de casa de moto, como quem tenta fugir um pouco do ar pesado da cidade — esse mesmo ar que a gente respira e, às vezes, parece nos sufocar. O trânsito seguia seu ritmo cansado, buzinas, fumaça e pressa. Mas, ao cruzar o viaduto que passo quase todos os dias, o tempo parou por um instante.Ali, no meio do concreto e da pressa, vi uma mulher sendo atacada por dois homens. Não era apenas uma briga: era o corpo dela lutando desesperadamente pela própria vida, pelo direito de voltar pra casa. Parei a moto junto com outro motociclista e, num impulso que nem pensei, corremos pra afastar o perigo.Ela estava em choque. O olhar perdido, a respiração curta, o medo ainda colado na pele. Juntei suas coisas espalhadas pelo chão — a bolsa, o celular, os restos de uma dignidade que quase lhe roubaram. Abracei-a. Não disse nada no início, porque às vezes o silêncio é o único abrigo possível depois da violência.Era uma mulher negra. Estava no ponto, sozinha, sem dinheiro pro ônibus, esperando a última condução pra voltar pra casa. Uma cena tão comum e, ao mesmo tempo, tão brutal — porque nessa cidade, ser negra, pobre e mulher é andar todo dia com o risco como companhia.Paguei um Uber pra ela. Pedi pra respirar, pra aceitar aquela ajuda que não era caridade, era apenas o mínimo que se pode fazer quando o mundo insiste em ser tão cruel.Enquanto o carro se afastava, pensei na ironia de tudo: uma briga por uma bolsa. E quantas violências urbanas nascem justamente da falta dela? Da falta de acesso, da falta de oportunidade, da falta de um lugar seguro pra existir. Não sou santo, nem herói. Só não pude ser omisso. Talvez, naquele instante, tenha sido apenas um homem tentando costurar o rasgo de uma cidade que insiste em se desfazer, todos os dias, nas margens do viaduto.




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